Iniciativa de Salgado para se livrar de passivo foi montada por Manuel Vicente e pelos generais “Kopelipa” e “Dino”, revela o jornal português Expresso.
Meio ano antes do colapso do BES, em 2014, uma empresa de gestão de fundos de investimento com sede em Londres e ligada a oligarcas russos tentou comprar a Escom, o braço não financeiro do Grupo Espírito Santo em Angola. O processo de aquisição envolveu um banco estatal russo de investimento, o VTB Capital.
Um conjunto de e-mails a que o Expresso, a SIC e o projeto de jornalismo sem fins lucrativos Setenta e Quatro tiveram acesso numa investigação sobre a agenda do banqueiro Ricardo Salgado revela, além disso, que dois administradores do VTB Capital ligados ao financiamento do negócio passaram nessa altura para a empresa compradora, a Gemcorp, incluindo o seu fundador e atual presidente-executivo, Atanas Bostandjiev.
Com negócios em vários sectores em Angola, sobretudo no imobiliário e na prospeção de diamantes, a Escom enfrentava então uma situação financeira crítica e era um dos maiores contribuidores para o passivo do Grupo Espírito Santo (GES), assente em dívida ao BES Angola, num momento em que o Banco de Portugal exigia que o BES deixasse de estar tão exposto ao grupo da família Espírito Santo. A venda era por isso considerada necessária e urgente, de modo a poder aliviar a pressão sobre a falta de liquidez que Ricardo Salgado enfrentava.
O interesse na Escom foi confirmado a 23 de dezembro de 2013, quando o VTB Capital garantiu num e-mail enviado aos diretores do BES que financiaria a aquisição da maioria do capital da empresa, esperando reunir as condições para completar a operação “antes de 31 de janeiro de 2014”. O interlocutor do banco russo nesse e noutros e-mails, Felipe Berliner, tornar-se-ia pouco depois membro do comité de investimento da Gemcorp.
Apesar de terem chegado a ser publicadas na imprensa referências à Gemcorp e à aproximação que esta empresa fez para ficar com a Escom, a ligação ao círculo de Putin nunca foi tornada pública.
Já depois da invasão russa da Ucrânia, no ano passado, o “Financial Times” expôs uma série de factos comprometedores. De acordo com o jornal britânico, os primeiros empresários a investir na Gemcorp, Albert Avdolyan e Sergei Adoniev, usaram para isso o dinheiro obtido num negócio ligado à Rostec, um conglomerado de empresas estatais do sector da defesa que tem fornecido armamento para a guerra na Ucrânia e está debaixo de sanções internacionais.
Adoniev desligou-se da Gemcorp logo em 2015, mas Avdolyan manteve-se como investidor até 2020. Apesar de ele próprio só constar na lista de sanções ucraniana — mas não nas listas da União Europeia ou dos Estados Unidos —, Albert Avdolyan é muito próximo de Sergey Chemezov, o CEO da Rostec e um dos melhores amigos de Putin.
Avdolyan é parceiro da Rostec em vários projetos de carvão e gás na Sibéria e no Extremo Oriente, além de ser acionista de uma subsidiária da Gazprom, empresa que está nas listas de sanções europeia e norte-americana.
A MÃO DOS ANGOLANOS
A tentativa de compra da Escom por parte da Gemcorp com financiamento do VTB Capital teve detrás o então vice-presidente angolano Manuel Vicente e os generais Hélder Vieira Dias (mais conhecido como “Kopelipa”) e Leopoldino Fragoso do Nascimento (“Dino”).
Numa das 51 referências a estas três figuras encontradas na agenda de Ricardo Salgado, o banqueiro escreveu a 28 de janeiro de 2014, quando se aproximava a data definida pelo VTB Capital para concluir a operação: “General ‘Dino’ em Angola com VTB ficou de ligar.”
Quatro anos antes, em 2010, Vicente, “Kopelipa” e “Dino” tinham assinado um contrato de compra da Escom, mas apenas chegou a ser paga uma primeira tranche e o negócio acabou por ser revogado em outubro de 2013. Não foi possível apurar se os dois generais e o ex-vice-presidente de Angola chegaram, já em 2014, a ser investidores em algum dos fundos geridos pela Gemcorp. De qualquer forma, os documentos mostram que a relação com os russos não só foi estabelecida através destes angolanos, como dependia deles.
A 30 de janeiro de 2014, o dia em que a Gemcorp foi formalmente criada, Salgado disse numa reunião do Conselho Superior do Grupo Espírito Santo: “Falei com o general ‘Dino’ que disse que chegou a acordo com o banco russo e em princípio a operação pode avançar.”
Pouco depois, a 2 de fevereiro, Daniel Proença de Carvalho, advogado de Salgado, escreveu uma carta ao Banco de Portugal em que informou que a “operação de venda da Escom” se encontrava “em fase de conclusão”.
No entanto, em abril desse ano nada tinha realmente avançado. “As negociações para [a] venda da Escom encontram-se em curso, tendo recentemente sido estabelecidos para o efeito contactos com uma sociedade denominada Gemcorp”, lê-se numa auditoria da KPMG produzida à época. “Não obstante, a esta não podemos antecipar quando se efetivará a venda desta participação.” No documento é apontado o valor acordado para a aquisição: €92,8 milhões.
Segundo o jornal angolano “Expansão”, aquela empresa de gestão de fundos chegou a ser o maior credor de Angola, após ter assinado um acordo de financiamento de cinco mil milhões de dólares com o Ministério das Finanças de Angola e com o Banco Nacional de Angola em 2018.
Atualmente, a Gemcorp tem em Angola alguns investimentos no sector dos diamantes e em telecomunicações, estando ainda a construir uma refinaria em Cabinda, em parceria com a Sonangol, com ativos acumulados de 1,2 milhões de dólares, segundo números do ano passado. Contactada por e-mails, a empresa não esteve disponível para fornecer esclarecimentos.
Fonte: Expresso
